PROGRAMA

Esta seleção de obras foi idealizada e curada por um grupo de alunos do curso de Cinema e Vídeo da FAP. Ela reúne alguns vídeos baixados do Youtube, e inicia com um trabalho que foi realizado pelo artista francês Chris Marker. Ouvi dizer que ele morreu enquanto navegava no Youtube. Não consegui confirmar se isso é verdade, mas acredito piamente que seja.

 Nem é preciso passar pelas 20 horas de Immemory, CD-Rom lançado por ele em 1997 (que, ironicamente, se tornou inacessível ao longo dos anos, por conta da defasagem dos sistemas operacionais suportados), ou “visitar” o museu que Marker criou na plataforma de realidade virtual Second Life, para ver a coerência dessa história. Basta ver o seu mais famoso longa-metragem, Sem Sol (1982). Na verdade, basta ver o primeiro minuto dele. Um plano de três crianças caminhando juntas na Islândia em 1965, enquanto a narração diz que, para ele, aquela era a imagem da felicidade, e que tentara várias vezes associar a outras imagens, sem sucesso. A narração continua, dizendo que o cineasta desejara iniciar o filme com esta imagem, e uma cartela preta. Quem não visse a felicidade, ao menos veria o preto.

 O que interessa aqui é justamente como o comentário na narração explicita ainda mais a qualidade perfeitamente sintética daquela imagem, impossível de ser complementada, de ser comparada - mais evidente que a felicidade na imagem das crianças, só se não houvesse imagem alguma. “Depois de dar voltas ao mundo, só a banalidade me interessa”, ele vai dizer pouco depois. Esta qualidade sintética é cara ao artista na medida em que ela aparece nesses pequenos fragmentos, que facilmente se perderiam na memória, mas que se apresentam como grandes registros de sentimentos fundamentais, eternos. Dito isso, não é difícil imaginar o que faria Chris Marker gostar tanto do Youtube.

 “Kino”, filme de Marker que abre nossa seleção, postado no Youtube sob o codinome Kosinki em 2011, brinca com os vários “espectadores ideais” ao longo do século XX. E não teria ele mesmo previsto o espectador ideal do Youtube em Sem Sol? Aquele que está do outro lado do mundo assistindo à televisão num idioma que não domina (“não compreender aumenta o prazer”, “o horror tem um nome e um rosto; a beleza também”). Aquele que adentra uma zona análoga à imaginada por Tarkovsky e pelos irmãos Strugatsky - uma terra de ninguém, cheia de artefatos alienígenas, tão assustadores quanto fascinantes.

 Os outros vídeos da mostra também possuem um tanto daquela qualidade sintética, mas possuem ainda mais dessa qualidade alienígena - sua força é amplificada com o descompromisso que tiveram para fazê-los, e com o descompromisso que temos em encontrá-los. Se há algum ponto em comum entre eles é essa beleza inquietante, escondida por trás de vários defeitos que podem haver no percurso. São tão impossíveis de associar com outras imagens quanto a imagem das meninas - portanto, o que nos resta a colocar em seguida é o preto.